A inteligência artificial valorizará as competências que nos tornam humanos.
No seu livro “O Erro de Descartes”, o neurocientista António Damásio atualiza o axioma cartesiano “penso; logo, existo” para “sinto; logo existo”; algo como se o que caracterizasse a existência humana fosse a sensibilidade, e não a racionalidade.
Esse contrassenso me voltou à mente nesta sexta-feira - 23 de junho de 2023 – ao ler no semanário português Expresso50 uma interessante discussão sobre as interações em IA – inteligência artificial – e as inteligências humanas: racional, social, emocional, prática e tecnológica.
O texto é dos professores Boris Walbaum, fundador e CEO da Forward College, e Paul J. Leblanc presidente da universidade de Southern New Hampshire e do conselho acadêmico da Forward College. E está baseado em uma colocação de Sam Altman, o criador do ChatGPT: “com a IA, o custo da inteligência chegará perto de zero”.
Considerando que o custo do esforço físico dos humanos para o trabalho está sendo zerado com os sistemas de automação, é assustador pensar que o “custo da inteligência” também seja “zerado” – corresponderia à completa substituição do ser humano nos processos de produção. E entende-se que os processos de produção estruturam todas as relações humanas e moldam o nosso modelo de sociedade.
Algo que nossa cognição sem dúvida tem dificuldade de conceber: uma economia que prescinda da existência humana. Já que sem humanos, não há a economia.
Porém, os professores não tratam da distopia da substituição dos seres humanos na economia, mas sim de transformações na hierarquia das competências humanas. Mas para entendermos com um pouco mais de profundidade a discussão proposta, precisamos lembrar do conceito de inteligências múltiplas.
O conceito de inteligências múltiplas foi desenvolvido na década de 1980 pelo professor Howard Gardner e identificava sete tipos de inteligência: lógico-matemática, linguística, interpessoal, intrapessoal, corporal, espacial e musical. Alguns anos após os primeiros trabalhos, foram adicionados mais dois tipos, a inteligência existencial e a naturalista.
Cada inteligência corresponde a um tipo de competência: algumas pessoas são muito competentes para lidar com cálculos – caso dos engenheiros, por exemplo; outras pessoas trabalham especialmente bem com ideias e palavras, os escritores, advogados e jornalista. Grandes arquitetos possuem uma apurada noção espacial.
Por certo, não há pessoa que domine todas as inteligências em seu mais elevado grau, e não há pessoa que não possua inteligências em algumas das áreas citadas por Gardner.
Ocorre que em nossa sociedade, algumas inteligências são mais valorizadas que outras; as inteligências lógico-matemática e linguística sempre foram muito valorizadas. E o que falar da valorização da inteligência interpessoal na atual sociedade da comunicação com seus influencers?
Para Walbaum e Leblanc, o que a inteligência artificial trará será uma nova valoração de cada tipo particular de inteligência, segundo a possibilidade da competência obtida com essa inteligência poder ser suprida por uma máquina ou não.
Walbaum e Leblanc veem três grandes eixos de interação homem e máquina:
· O homem contra máquina
· O homem e a máquina
· O Homem para além da máquina
O homem contra máquina – não é difícil perceber que a competência para realizar cálculos a partir de fórmulas pré-estabelecidas, ou de gerar textos com formatos determinados - justamente as mais valorizadas até hoje em nossa sociedade, essas competências serão supridas integralmente pela IA. Como ressaltam os professores, assim como a Revolução Industrial substituiu empregos relacionados com o trabalho físico, as tecnologias avançadas de IA irão substituir os baseados nas inteligências lógico-matemática e linguística em áreas como a contabilidade, o apoio administrativo e jurídico, a programação e outros similares.
Porém, não substituirão a capacidade de avaliar criticamente os resultados obtidos com uma atividade. Isso porque a análise crítica de um resultado requer o entendimento da necessidade que gerou a atividade, e a capacidade de identificar contradições nos resultados obtidos. Além da destreza para estabelecer ligações entre diferentes situações relacionadas com o resultado que está sendo analisado.
O Homem e a máquina – sem dúvida, há ganhos expressivos de produtividade com IA aplicada aos processos de produção; e por certo, há espaço para a integração harmoniosa das ferramentas de IA na nossa experiência profissional. Isso se dará naquelas atividades onde a autonomia intelectual do executor possa ser mantida. Áreas de pesquisa e desenvolvimento são um bom exemplo de ganho de produtividade com o uso de IA e manutenção da autonomia intelectual de quem executa a tarefa.
O Homem para além da máquina – segundo os professores, a principal área onde a inteligência humana gera competências únicas que não podem ser substituídas pela IA está nas voltadas ao relacionamento humano. Atividades que exigem um elevado grau de inteligência social e emocional.
Vemos abaixo algumas delas, e é especialmente interessante atentar-se aos adjetivos aplicados pelos autores ao perfil dos profissionais, mais do que às profissões que não serão afetadas pela inteligência artificial:
· Líderes motivadores
· Professores empáticos
· Funcionários públicos compreensivos
· Profissionais de saúde compassivos e
· Assistentes sociais solidários.
Nota-se nesse perfil claramente a aplicação das inteligências interpessoal, intrapessoal, existencial e naturalista. Bem como a necessidade de um conhecimento baseado em um modelo mais socrático do que especialista.
Em outras palavras, a inteligência artificial valorizará as competências que nos tornam humanos.
O texto original pode ser acessado em: https://expresso.pt/opiniao/2023-06-23-Como-adaptar-o-ensino-superior-a-era-da-Inteligencia-Artificial-487cb767?utm_source=site&utm_medium=share&utm_campaign=mail
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